Vitor Geraldi Haase
O transtorno não-verbal de aprendizagem (TNVA) é um transtorno específico de aprendizagem caracterizado por dificuldades nas seguintes áreas: coordenação motora e percepção somatosensorial; cognição visoespacial; inferências indutivas; aritmética; cognição e habilidades sociais. A denominação TNVA e sua caracterização sindrômica são derivadas dos estudos do neuropsicólogo Byron Rourke da Universidade de Windsor, Canadá (www.nld-bprourke.ca).
Prevalência: Não existem estudos populacionais sobre a prevalência do TNVA, mas é possível estimar que as crianças com transtornos de aprendizagem correspondam a 10% da população em idade escolar e que ao menos 1% destas apresentem o TNVA. O TNVA corresponde a 10% dos motivos de consulta por dificuldades de aprendizagem.
Quadro clinico: O principal motivo de encaminhamento no TNVA são as dificuldades de aprendizagem, as quais constituem um enigma para os educadores e profissionais de saúde. A criança não aprende, apesar de conseguir se comunicar razoavelmente bem do ponto de vista verbal e, muitas vezes, não parecer retardada. As dificuldades visoespaciais, de comportamento e de socialização são freqüentemente observadas e relatadas pelos pais e educadores, mas não são valorizadas e raramente constituem motivo da consulta. Pode haver história prévia de dificuldades de desenvolvimento na primeira infância, inclusive um certo atraso na aquisição da linguagem, havendo posterior compensação. Na maioria das vezes não existe queixa de dificuldades com a alfabetização inicial. As dificuldades de leitura se referem, quase sempre a dificuldades de interpretação de textos.
As crianças com TNVA são descritas como desajeitadas ou descoordenadas. Apresentam dificuldades para aprender a andar de bicicleta, para amarrar os cadarços dos sapatos e com atividades esportivas.
As dificuldades de representação podem ser evidenciadas em tarefas de desenhos. De um modo geral, os desenhos são imaturos, simplificados e as relações espaciais não são adequadamente preservadas. Além da interpretação de textos, a aritmética é a área de aprendizagem mais comprometida.
Os indivíduos com TNVA apresentam dificuldades para decorar a tabuada, bem como para realizar operações aritméticas mais complexas, principalmente para dominar o algoritmo da subtração, multiplicação e divisão de números maiores do que a dezena.
As crianças com TNVA podem descritas como tímidas, ingênuas e sem malícia. Apresentam dificuldades para compreender os aspectos implícitos na interação social e na linguagem, principalmente a linguagem metafórica, a ironia e o sarcasmo. Em alguns casos existe sobreposição com o espectro autista (alterações qualitativas na socialização – estranheza, socialização intrusiva).
O pensamento é concreto, mas os indivíduos com TNVA não são intuitivos, apresentando muita dificuldade para aprender com a experiência. A aprendizagem exige instrução explícita e prática exaustiva.
Modelo neuropsicológico: O modelo neuropsicológico do TNVA considera a existência de pontos fortes e pontos fracos no perfil de habilidades. O modelo também considera que alguns déficits (ou habilidades) são mais fundamentais, enquanto outros são derivados. Os déficits subjacentes dizem respeito ao esquema corporal, psicomotricidade, processamento visoespacial e processos inferenciais (principalmente capacidade de indução). As manifestações secundárias e terciárias se manifestam como: dificuldades com a caligrafia; dificuldades com a prosódia, pragmática e interpretação de textos, dificuldades com matemática; déficits na exploração do ambiente e adaptação à novidade; incompetência social; instabilidade emocional. Da mesma forma as habilidades mais fundamentais preservadas relacionam-se com a fonologia, o vocabulário e a memória auditiva e verbal. As habilidades derivadas podem ser identificadas nas áreas da mecânica da leitura e da habilidade de decorar.
Correlação anátomo-clinica: Inicialmente acreditou-se que as dificuldades dos indivíduos com TNVA poderiam ser explicadas como uma disfunção do hemisfério direito, em analogia ao que é observado em crianças e adultos com lesões adquiridas e congênitas do hemisfério direito. A partir do advento dos métodos de neuroimagem ficou claro, entretanto, que as lesões do hemisfério direito são relativamente raras como causa de TNVA, enquanto os comprometimentos da substância são muito mais freqüentes, tais como observados na hidrocefalia congênita, síndrome fetal alcoólica e muitas síndromes genéticas onde ocorre disgenesia do corpo caloso e de outras estruturas da substância branca. Adicionalmente o padrão específico pode ser constatado em outras condições tais como as seqüelas de tratamento profilático para leucemia, nas quais sabidamente ocorrem comprometimento da substância branca. A partir destas observações foi desenvolvido o modelo da substância branca, o qual postula que o comprometimento do hemisfério direito é condição necessária enquanto o comprometimento da substância branca é condição suficiente para a ocorrência das manifestações de TNVA. Como no hemisfério esquerdo predominam as fibras de conexão córtico-cortical de curta distância (fibras arciformes ou fibras em U) tal hemisfério pode se caracterizar por um estilo mais analítico de processamento de informação. O hemisfério direito, por sua vez, funciona de modo mais holístico em decorrência do maior volume de fibras de conexão córtico-cortical de longa distância. Lesões ou disfunções da substância branca podem, portanto, repercutir mais sobre as funções do hemisfério direito. Uma das doenças em que o modelo da substância branca encontra mais apoio empírico é a leucodistrofia metacromática, na qual as fibras arciformes são seletivamente poupadas. Um padrão típico de TNVA tem sido observados tanto em crianças quanto adultos com leucodistrofia metacromática.
Diagnóstico: O diagnóstico de TNVA é realizado clinicamente a partir da presença de uma série de critérios: 1. Déficits bilaterais na percepção tátil, geralmente mais acentuados à esquerda do corpo. A percepção tátil simples pode normalizar-se com o tempo, mas a interpretação de estímulos táteis mais complexos permanece alterada; 2. Déficits bilaterais na coordenação psicomotora, geralmente mais acentuados à esquerda do corpo. Habilidades motoras simples e repetitivas podem normalizar-se com a idade, mas habilidades motoras mais complexas permanecem alteradas ou tendem a piorar em relação às normas; 3. Habilidades organizacionais visoespaciais extremamente comprometidas. Discriminações visuais simples podem normalizar-se com a idade. Com a idade os déficits visoespaciais tendem a piorar comparativamente às normas; 4. Dificuldades importantes para lidar com situações ou informação nova ou complexa. Forte tendência a confiar em estratégias rotineiras, reações e respostas decoradas (freqüentemente inapropriadas para a situação). Dificuldade para adequai as respostas de acordo com o feedback recebido. Freqüentemente também: uso de respostas verbais apesar de a situação requisitar um outro enfoque. Essas tendências persistem ou tendem a piorar com a idade; 5. Déficits importantes na solução não-verbal de problemas, formação de conceitos e testagem de hipóteses; 6. Distorções na percepção e orientação temporal; 7. Habilidades verbais decoradas bem desenvolvidas (vocabulário, facilidade para decorar); 8. Verbosidade rotineira e repetitiva, com alterações no conteúdo da linguagem e dificuldades nos aspectos pragmático-comunicacionais; 9. Déficits importantes na mecânica aritmética e na compreensão de leitura comparativamente às habilidades adequadas de leitura de palavras isoladas; 10. Déficits importantes na percepção, juízo e interação social, freqüentemente levando a isolamento social. Freqüentemente estressados em situações de novidade social, com ansiedade extrema, chegando a pânico em tais situações. Alta probabilidade de desenvolver psicopatologias internalizantes, como depressão, a partir da pré-adolescência.
Diagnóstico diferencial: O diagnóstico diferencial envolve distinguir o TNVA de quadros de deficiência mental, TDAH forma predominantemente desatenta, transtorno afetivo bipolar e transtorno do espectro autista.
Avaliação neuropsicológica: A avaliação neuropsicológica deve compreender os domínios da inteligência, desempenho escolar, habilidades sensório-motoras, processamento visoespacial, aritmética e funcionamento psicossocial
Em muitos pacientes é possível observar no WISC um padrão de dissociação inverso ao da dislexia: QI de execução muito inferior ao QI verbal. Nas escalas verbais do WISC é típico déficit no desempenho no subteste Aritmética. O TNVA é uma das raras situações em que o teste das Matrizes Progressivas de Raven não é um procedimento adequado. O Raven subestima a inteligência dos pacientes com TNVA uma vez que se baseia justamente nos processos de raciocínio que estão mais comprometidos na síndrome: raciocínio indutivo por analogia em função de padrões visuais. O subteste Vocabulário do WISC é melhor. O desempenho escolar pode ser avaliado por meio do TDE (Teste de Desempenho Escolar), no qual o desempenho deve situar-se na faixa da normalidade para a leitura de palavras isoladas. A avaliação psicomotora deve incluir tarefas que avaliem orientação direita-esquerda, topognosia, gnosias digitais, estereognosia, grafoestesia, ritmo, persistência motora, tarefas motoras cronometradas como ou 9-Hole-Peg Test ou similar, diadococinesia
coordenação recíproca das mãos (Oseretski), seqüências de Luria, instruções conflitantes, vai – não vai, perseveração, paratonia, sincinesias etc.
Comorbidades psiquiátricas: Na idade pré-escolar as crianças com TNVA podem apresentar transtornos externalizantes associados: hiperatividade e dificuldades disciplinares. A partir da pré-adolescência começam a surgir transtornos internalizantes: ansiedade e depressão
Etiologia: O TNVA constitui o fenótipo cognitivo de muitas síndromes genéticas e não-genéticas, tais como síndrome fetal alcoólica, hidrocefalia obstrutiva congênita, síndrome de Turner, síndrome do sítio frágil do cromossoma X em mulheres, hipotireoidismo congênito tratado, síndrome velo-cárdio-facil, síndrome de Sotos, síndrome de Joubert, síndrome de Costello, síndrome de Aarskog etc. Muitas dessas entidades nosológicas apresentam como denominador comum o comprometimento da substância branca, leucodistrofia metacromática, seqüelas de tratamento profilático para leucemia etc..
Impacto Psicossocial: Como as crianças e adolescentes apresentam um desempenho lingüístico aparentemente normal criam-se expectativas de desempenho acima da capacidade real da criança, as quais são inevitavelmente frustradas. O impacto psicossocial é complicado pelas comorbidades com transtornos externalizantes na idade pré-escolar e transtornos internalizantes a partir da pré-adolescência.
Prognóstico: Não existem estudos longitudinais publicados sobre o desenvolvimento a longo-prazo de crianças com TNVA. O TNVA compromete o funcionamento independente do indivíduo de uma maneira que os transtornos do hemisfério esquerdo, como p. ex. a dislexia, não fazem. As disfunções do hemisfério direito têm pior prognóstico do as disfunções do hemisfério esquerdo uma vez que impactam sobre o funcionamento social independente.
Implicações educacionais: As habilidades motoras e visoespaciais não melhoram com treinamento. Em algum ponto é preciso desistir dos esforços de remediação nessas áreas. O treinamento em habilidades sociais dá bons resultados do ponto de vista da integração e autonomia social.
As abordagens construtivistas e sócio-construtivistas podem ser contra-indicadas em indivíduos com TNVA. Os indivíduos com TNVA apresentam deficiência nos processos de intuição e muita dificuldade para aprender espontaneamente na interação social. O ensino das crianças e adolescentes com TNVA deve se basear nos métodos tradicionais de “decoreba” (“practice and drill”), capitalizando sobre as boas habilidades de memorização verbal.
Os indivíduos com TNVA se beneficiam da explicitação do contexto, do objetivo das tarefas e do modo de atingi-los. O treinamento em auto-instrução verbal a partir da estruturação verbal de rotinas altamente praticadas é o método mais eficaz de ensino para os indivíduos com TNVA. A aprendizagem exige instrução explícita e prática exaustiva
Leituras recomendadas
Johnson, D. J. & Myklebust, H. R. (1987). Distúrbios de aprendizagem. Princípios e práticas educacionais (2ª. ed.). São Paulo: Pioneira.
Pennington, B. P. (1998). Diagnóstico dos transtornos de aprendizagem. Um arcabouço neuropsicológico. São Paulo: Pioneira.
Rourke, B. P. (1989). Nonverbal learning disability. The sundrome and the model. New York: Guilford.
Rourke, B. P. (Org.) (1995). Syndrome of nonverbal learning disabilities. Neurodevelopmental manifestarions. New York: Guilford
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